Nas cidades o que encontramos são cidadãos que não se assumem como tal, não são praticantes. Diria até que são altruístas sedentários, pessoas com potencial de doar ou compartilhar algo, mas que se fecham em territórios restritos. Como, então, provocar alguma alteração na relação entre essas pessoas? E, pensando que essas pessoas se encontram nas ruas, como tornar as ruas espaços potencializadores dessas mudanças? Essas questões me provocam e espero que eu consiga te provocar com elas também.
Penso as ruas não como apenas uma conexão entre lugares, mas como lugares em si. Lugares que podem estimular as crianças e os jovens a ocuparem o território ao seu redor de maneira criativa, gerando contatos genuínos. E isso deve ser entendido como um ato educativo, político, de saúde e de cuidado. Ocupar o território ao seu redor é poder mostrar para as pessoas que suas presenças mudam o entorno. É apontar uma nova demanda, uma nova possibilidade de construção de aprendizagem, na qual a cidade como um todo é responsável pela educação.
Já pensou se a aprendizagem informal que mora nas brechas das cidades for mais e mais descoberta? Quantas pessoas não aceitariam compartilhar suas histórias, ensinar o que sabem? Já imaginou se você passasse a se reconhecer como um educador das ruas? Isso pode criar um novo imaginário social sobre o que é educação, percebendo que a educação que transborda pela cidade é um símbolo diferente dos outros que se perpetuaram até agora. Nessa linha, educação é cuidado consigo mesmo, com o outro e com o ambiente.
Gandhi é sempre uma ótima figura para pensar mudanças em qualquer tempo e contexto, até mesmo mudanças na educação no século XXI. Após ter se mudado para a África do Sul para trabalhar, sofreu preconceito por ser indiano e, quando usava os trens sul-africanos, exigiam sua transferência para a terceira classe. Isso o colocou numa situação insuportável, produziu um sentimento de “não dá mais”, de que não aceitaria mais que qualquer pessoa fosse menosprezada por sua cor ou nacionalidade.
Esse sentimento de “não dá mais” é uma característica de Gandhi durante suas lutas. “Não dá mais” como não cooperação com os processos de colonização, de dominação, de preconceito; como forma de resistência e de mudança. Esse sentimento repetiu-se no que culminou na Marcha do Sal, quando se recusou a comprar sal da Inglaterra, sendo que o sal distribuído na Índia poderia ser produzido pela própria Índia.
Gandhi percebeu que viveu diversas situações as quais o incomodaram, mas que, numa tomada de atitude (ou da falta dela, referindo-se a sua prática de “não-violência”), ele assumiu um modo de ser que não suportava isso que o incomodava. Agora, pensando na educação pública brasileira, o que “não dá mais”?
Para mim, “não dá mais” um aluno passar 12 anos na escola e mesmo assim não aprender nem a ler. Não dá mais para encontrarmos jovens de 17 anos com aspirações que mais são repetições de carreiras que outros tantos hoje seguem, rumo a oceanos de infelicidade, sem que tenham refletido minimamente sobre quem são e como podem lapidar sua singularidade. Não dá mais para chegar em escolas e ficar impressionado com o número de professores de licença, alguns em depressão, e achar que um sistema que deixa a mente e o corpo das pessoas domado e dolorido deve ser reaberto do mesmo jeitinho todos os dias.
Cada vez mais acredito que só quando nos apropriarmos do ambiente ao nosso redor com ênfase, criatividade e generosidade é que daremos abertura para que surja uma abordagem de aprendizado forte o suficiente para mudar a educação. Se não cultivarmos laços fortes com a cidade e as pessoas ao redor, aprendendo com elas, aceleraremos o processo de desumanização já em curso.
Dizem que, para ser um bom educador, tem que ser um bom aprendiz; tem que saber como aprender para saber como ensinar. Sendo assim, se eu fosse realmente radicalizar esse pensamento, proporia as crianças para educar os adultos. Parece absurdo, mas não há melhores exploradores, entusiastas e aprendizes como as crianças. Quando proponho isso não penso em crianças ensinando conhecimentos já estruturados aos adultos, mas crianças apresentando aos adultos o que as motiva, o que as leva a aprender como aprendem. Alguns entendem crianças como vasos que precisam ser preenchidos, vasos com muita capacidade de preenchimento (o que seria a aprendizagem) e sugerem que os adultos educadores deveriam preencher essas crianças. O erro fundamental dessa perspectiva é desconsiderar aspectos importantes que compõem o ser humano – a vontade, a motivação, a singularidade que cada criança possui e que pode desenvolver.
Desse modo, acredito que as crianças não precisam nem serem consideradas vasos que devem ser preenchidos, nem sujeitos já prontos, mas que, sim, possuem um enorme potencial de aprendizagem, e que nem todas aprendem da mesma forma; nem sequer desenvolvem habilidades de modo semelhante. Não é à toa que ao longo do percurso escolar vemos colegas que se destacam em determinadas áreas, seja alguma matéria (matemática, física, biologia), seja algum esporte, seja algum instrumento musical, alguma habilidade artística ou comunicativa – e a lista segue pois somos seres complexos. Além disso, às vezes aprendemos melhor com um professor do que com outro. Muito provavelmente esse outro professor usou um método diferente para abordar o mesmo conteúdo e não percebemos. O ponto é: os adultos precisam aprender com as crianças como elas aprendem, porque, além de serem corpos que estão abertos às mais diversas experiências, são corpos com motivações próprias para buscar experiências que lhes parecem importantes, sem preconceitos com o que encontram. As crianças são implicadas com o que aprendem e com como isso se relaciona com sua vida; no entanto, na escola, nos ensinam conhecimentos que são tratados como se fossem puros, sem relações com quem o produziu e com o modo que é aplicado ou utilizado. Somente uma criança seria capaz de se perguntar sem pudor: o que podemos aprender caminhando, observando, perdendo-se pela cidade?
E digo mais, ela não teria vergonha de experimentar buscar essa resposta. Uma cidade feita por e para crianças é uma cidade para qualquer um. Não quero propor mais parquinhos, escorregadores e balanços; estou propondo mais cidade. Se você sai pelas ruas e não consegue associar nada do que você vive nelas com o que você estudou, para que(m) você estuda?
*Imagens retiradas do Portal Aprendiz.